Fui assistir recentemente em Belo Horizonte, a uma exposição
das obras do pintor Cândido Portinari, no Cine Teatro Brasil. Tive a honra de
conhecer, entre outras obras, os famosos painéis gigantes Guerra e Paz, que se
encontravam no prédio da ONU desde 1955 e agora, graças ao Projeto Portinari,
vão inicialmente para Paris e depois percorrer o mundo, antes de serem
devolvidos ao lugar para o qual foram executados sob encomenda. Ao final da
exposição pude conhecer melhor as imensas dificuldades para desmontar e trazer
para o Brasil os dois painéis para restauro, num trabalho de extrema
competência em nível internacional, não só de técnicas de restauração, como
também de logística e transporte. Inegavelmente, um orgulho para o Brasil,
tanto quanto à obra, como quanto à restauração. E enquanto percorria os salões
da exposição, extasiado pelas belíssimas obras, me peguei imaginando uma cena
dantesca: os Black Blocs destruindo aquele lugar. Mascarados indóceis,
destruindo os sete andares do prédio histórico recém restaurado de forma
irrepreensível, num processo que demorou anos e consumiu alguns milhões de
reais. Caras tapadas de preto, quebrando e queimando aquelas esplêndidas obras
de Portinari, num pretexto vazio de uma manifestação qualquer. No meio da minha
divagação, foi-me impossível deixar de pensar na imbecilidade de um movimento
assim. Num momento em que os valores parecem ter sido subvertidos, é impossível
aceitar a idéia de que chegamos a um ponto de ter que defender o óbvio, o
correto. Tenho dificuldade em entender como algumas pessoas - muitas inclusive,
tidas como intelectuais, como o cantor Caetano Veloso - defendem
incondicionalmente estes indivíduos. Argumentam os integrantes de grupos
anarquistas como os Black Blocs e os Anonymous que, diante do calabouço moral
em que se encontra o Brasil, a anarquia é a única saída para o nosso país.
Estes grupos são contra qualquer forma de organização, de leis, de hierarquia e
de poder constituído. É engraçado, pois se pensarmos com algum desvelo, logo concluímos
que até a anarquia precisa de uma dose mínima de organização para existir. Do
contrário, como seria possível um ato orquestrado e sincronizado em que o grupo
anarquista Anonymous deflagrou ataques cibernéticos simultâneos em mais de uma
dezena de capitais mundiais? Da mesma forma, apesar do entendimento de que o
Black Bloc não é uma entidade e sim uma tática de manifestação desorganizada,
como poderiam os Black Blocs organizar manifestações e atos de solidariedade
uns aos outros em tantas cidades do Brasil, sem um mínimo de organização? Black Bloc é o nome dado a uma
estratégia de manifestação e protesto anarquista, na qual grupos de afinidade, mascarados e vestidos de preto se
reúnem com objetivo de protestar em manifestações, conferências de
representacionistas entre outras ocasiões, utilizando a propaganda pela ação para questionar a ordem do sistema
vigente. Com origem na Alemanha na década de 70, sua atividade no Brasil está
invariavelmente relacionada a saques e destruição de prédios públicos, bancos,
lojas e escritórios, o que se convencionou chamar de vandalismo criminoso.
Estes grupos querem nos fazer crer que não têm uma liderança que fale por eles
ou alguém que os represente, o que me parece inverossímil, face aos atos de
vandalismo bem orquestrados, geralmente organizados pela internet. Que a
liderança está - ao menos até aqui - convenientemente no anonimato, eu não
duvido, mas daí a acreditar que não haja liderança, já são outros quinhentos...
mascarados. Observando com mais atenção a evolução destes movimentos desde o
seu surgimento no Brasil, nas manifestações de junho passado, percebo certa
trajetória ascendente e compassada, que em nada faz lembrar um grupo
desorganizado anarquicamente. Agora mesmo vimos um coronel da PM, sozinho e sem
qualquer equipamento de proteção, ser brutalmente agredido por quase 70 destes
indivíduos enfurecidos, que o atacavam com paus, pedras e barras de ferro, como
a um animal. Aliás, nem um animal pode ser atacado assim, covardemente.
Saliente-se que este policial militar de alta patente, era o negociador, o
elemento que habitualmente ia à frente, de cara limpa e sem proteção de capacete,
escudo ou arma, com a missão de possibilitar a mobilidade e a proteção dos
próprios manifestantes. Este episódio lembra os diversos atos de agressão e
violência entre gangues de torcidas organizadas que, não raro, terminaram em
mortes por espancamento. Porque com “manifestantes” seria aceitável? Isto é
feito em nome de uma ideologia, de uma reivindicação? Que mensagem queremos
passar, permitindo situações como esta? Fatos assim deveriam servir como alerta
para que a sociedade faça alguma coisa e sem demora. No entanto, as sequelas
dos tempos da ditadura fazem com que permaneçamos na letargia, cheios de dedos
ao punir qualquer ato de manifestação popular, com o receio de estarmos
reprimindo o direito à livre expressão. Com isso, perdemos a noção do limite
tênue entre direito e dever. O Brasil está acostumado a enviar grande
contingente de militares para missões de paz em diversos países, como o Haiti,
por exemplo. Essas missões têm como objetivo principal assegurar a ordem e
fazer prevalecer as leis daquele país. Interessante observar que, numa situação
dessas, quando se trata de outro país, não sentimos o menor constrangimento em
utilizar o nosso exército como ferramenta para manter a ordem, mas quando se
trata do Brasil, mesmo quando vivemos situações idênticas de descontrole com o
flagrante desrespeito à ordem pública e à preservação da propriedade pública e
privada, não admitimos utilizar as mesmas ferramentas. Afinal, para que serve o
nosso exército e a gorda verba com que o mantemos com nossos pesados impostos,
se não para defender a sociedade de seus inimigos, internos ou externos? Esse
constrangimento fica patente no posicionamento titubeante assumido pelas
autoridades, especialmente pela presidente Dilma que, certamente por ter sido
guerrilheira nos tempos da ditadura militar, julga incoerente combater com mais
veemência manifestantes que se fazem valer hoje de práticas semelhantes. Esse
posicionamento dúbio e a falta de ações concretas por parte das autoridades,
além de fomentar o fortalecimento deste comportamento criminoso, inocentemente
travestido de manifesto de livre expressão, possibilita que facções criminosas
também utilizem estes atos para marcar território e demonstrar poder, como fez
recentemente o PCC ao fechar a rodovia Fernão Dias, na saída de S. Paulo,
pegando carona na revolta de moradores da região pela morte inaceitável de um
adolescente pela polícia. E o pior é que, quanto mais tempo passa, mais este
verdadeiro câncer se alastra e se fortalece, e depois vai ser muito mais difícil
– senão impossível - controlar e reverter a situação. Em inúmeros países, a
história nos mostra situações semelhantes de grupos que surgiram igualmente
travestidos de revolucionários e anarquistas - como é conveniente - geralmente munidos
de ideais comunistas e acabaram por culminar em perigosos governos ditatoriais,
cujo apego ao poder logo se torna visível. Estes movimentos surgem pequenos e
são geralmente subestimados. São apenas jovens manifestando suas ideologias, o
que é saudável - dizem alguns. Mas, neste caso, é de se pensar na possibilidade
real de que a anarquia e o caos interessam a muitos grupos – alguns até de
outros países - que perseguem obcecadamente o poder, e utilizam veladamente estes
movimentos como instrumento de obtenção dos seus objetivos e defesa dos seus
interesses. Quanto mais caos e desrespeito à ordem e às leis, maior a
indignação da sociedade e, por conseqüência, maior a sua predisposição a
aceitar um governo ditatorial. E o que realmente interessa à sociedade - as
mudanças reais, especialmente na política - fica ainda mais distante, depois do
compreensível esvaziamento das manifestações legítimas do povo nas ruas. Não é
por acaso que vemos, em alguns momentos, a polícia assistir impassível, os
vândalos barbarizarem patrimônio público e privado, como que a desafiar: -Estão
vendo? Acham que a polícia é truculenta, então deixa quebrar tudo pra eles
perceberem a necessidade da ordem. Aliás, a polícia - não sei se por estratégia
(duvidosa) ou se por incompetência - diante de um quebra-quebra, geralmente enfia
os pés pelas mãos: consegue bater e prender quem não participa dos atos de
vandalismo e simplesmente assistir impassível os mascarados quebrarem tudo, e
pra fechar com chave de ouro, de vez em quando ainda mata um ou outro Amarildo de
forma absurda. Essa situação é, a meu ver, extremamente perigosa e não deveria
ser subestimada. O dinossauro pode estar quebrando o ovo. O filhote é até bonitinho,
mas depois... Godzilla talvez seja o maior vândalo do cinema. Destruía tudo e
nem sabia porquê. A diferença entre ele e os nossos vândalos Blocs é só a
máscara. E assim, assistimos estarrecidos, a cada dia um novo capítulo da
ascensão destes grupos e a perigosa aceitação e permissividade de determinados
setores da sociedade, alguns absolutamente improváveis, por serem de onde menos
se esperava tal receptividade. Dando mostras claras de que não se trata de um
movimento anencéfalo e desorganizado, os Blocs vêm pegando carona em todos os
movimentos que têm alguma expressão na mídia nacional e internacional, enquanto,
por outro lado, deixam, estranha e inexplicavelmente de se manifestar diante de
situações de absoluta indignação, como a morte do servente Amarildo no Rio e do
adolescente em S. Paulo, ambos pela polícia militar, o acolhimento dos embargos
infringentes pelo STF, que culminou em novo julgamento dos réus do mensalão, o aumento absurdo do IPTU de
S. Paulo – enquanto o movimento Passe Livre reivindica 20 centavos e pede a
surreal tarifa zero – entre outras situações igualmente estarrecedoras, diante
das quais, os Black Blocs ficaram misteriosamente inertes. No caso da
manifestação dos professores do Rio e o resgate dos cães beagles no laboratório
do Instituto Royal na cidade de S. Roque, no interior paulista, os mascarados
não perderam tempo. Em ambos os casos, o embate com a polícia e os atos de
vandalismo no final, foram recorrentes. No caso da invasão do laboratório, pelo
menos até agora, não tivemos conhecimento de que houve acolhimento dos
mascarados por parte dos ativistas, mas no caso dos professores, foi diferente.
É claro que o professor não é condignamente remunerado - nem prestigiado ou
respeitado - não obstante desempenhar papel de extrema importância na educação,
que é – ou deveria ser - a base da sociedade de qualquer país, mas é pertinente
observar que no novo Plano para Docentes do RJ, um professor em início de
carreira, com carga de 40 horas semanais, ganhará R$4.147,00, enquanto o seu
colega de SP, nas mesmas condições, ganha R$2.600,00. A hora/aula do RJ é a
mais alta entre todas as capitais. Será que os docentes paulistas que se
solidarizaram com os colegas cariocas em suas reivindicações sabem disto? E o
mais surpreendente é que, apesar dos atos violentos dos últimos dias, os
descontentes professores municipais do RJ em greve, aprovaram no último dia 9
uma resolução em que defendem incondicionalmente os vândalos dos protestos do
Rio. Isto é que é “corporativismo” levado ao extremo. Em outras manifestações,
o movimento começa pacífico e descamba para o quebra-quebra no final, com grupos
infiltrados que nada têm a ver com as reivindicações. Neste caso, não há mais
como dissociar o movimento dos professores, dos Black Blocs cara tapadas. Temos
agora o movimento dos Mestres Blocs. Realmente, uma verdadeira lição de mestre.
Quando vem justamente dos mestres uma lição de que é correto depredar com
violência patrimônio público e privado, em manifestos completamente desprovidos
de uma reivindicação - e isto não quer dizer que, se tivessem uma, a violência
seria legitimada – passamos a questionar o papel do educador das nossas
crianças e jovens, tão carentes de valores e limites, no nosso Brasil de hoje.
Esse é o futuro que estamos escrevendo para o nosso país? Que sociedade
consegue evoluir sedimentando valores que legitimam a subversão de deveres coletivos
em detrimento de direitos individuais? Assim como o pai permite que o filho
adolescente cometa crimes e infrações com a intenção torta de fazê-lo um homem,
parte da sociedade permite equivocadamente que os Blocs vandalizem livremente,
passando a mão em suas cabeças mascaradas, saudando o tão esperado surgimento
de jovens com “ideais”. Mas que ideais serão estes? Quebrar por quebrar, tudo
que encontrar pela frente, inclusive pessoas? Não devemos deixar de observar
que em todos os outros países onde os Black Blocs atuam, em situações de
extremo vandalismo e violência como as que ocorrem no Brasil, o tratamento a
eles dispensado é absolutamente diferente, pois não há - nem deveria haver -
nenhum constrangimento em simplesmente aplicar a lei a quem a ela desobedece. Acho
que devemos refletir sobre o que é pior para uma sociedade: jovens “eternamente
conformados”, trabalhadores que contribuem com seu talento e criatividade para
o desenvolvimento (seu e da sociedade) ou Godzillas anarquistas, “eternamente
desempregados”, cujo único ideal é a desconstrução, vivendo numa sociedade sem
regras e sem governo? Será que pode subsistir uma sociedade sem leis, sem meios
de produção, sem polícia e sem governo? Acredito que nem as tribos da
pré-história tinham (des) configuração semelhante. E assim caminha a humanidade
– em uma avenida qualquer. Se no Rio o culpado é o Cabral, em S. Paulo a culpa
é do Alckmin, em Belo Horizonte o culpado é o Lacerda e no Brasil a culpa é da
Dilma. Mas na verdade, quem tem razão mesmo são os cariocas: realmente, é tudo
culpa do Cabral. O Cabral que em 1500, teve o azar de descobrir isto aqui!