...mas um dia se cansou,
de tanto lhe dar agrado,
para ver se ele falava,
sem sequer um resultado:
"-Eu desisto, meu amigo,
não me deixas mais afoito!"
O papagaio disse aos gritos:
"-Mas não pare c'os biscoitos!"
Desde há muito, Caldas tem sido
escolhida com alguma freqüência por bandos de ciganos que costumam acampar
próximo a sítios e fazendas, onde pedem água, comida e favores, no período em
que permanecem no local eleito, que pode chegar a algumas semanas, dependendo
da acolhida que recebem. Pois bem, no final do ano, a minha casinha na roça de
Caldas, foi um desses lugares eleitos e recebeu um casal de ciganos em busca de
acolhida. Como não encontraram ninguém - já que a casa é de campo - e talvez
por pensar que estivesse abandonada, resolveram se instalar no forro do quarto.
Quando eu cheguei, depois de algumas semanas, dei de cara com os dois, que se
assustaram, mas logo se acostumaram com a nossa presença. Me pediram para
deixá-los ficar por um tempo, contando que haviam caído no trote do lote e
feito um mau negócio, acreditando na papagaiada de um tal de Gordo e um tal de
Cipó - que com certeza deveriam ter sido ciganos em outras vidas - e por isso,
precisaram ficar um tempo acampados na mansão deste último, na roça vizinha, até
conseguirem resolver o problema. Permiti que ficassem. No começo – e acho bem
que ainda até hoje – me sentia visita em minha própria casa, tamanha era o “à
vontade” do casal. Como todo o cigano, estes não fugiam à regra: eram
bagunceiros e barulhentos. Viviam arrastando coisas no andar de cima,
atrapalhando o meu sono, todas as noites. Logo percebi que não iriam embora tão
cedo, pois ela estava grávida e parecia que haviam encontrado o local ideal. O
meu forro era seguro e quentinho e eles haviam feito dele um verdadeiro ninho
de amor. De dia saíam para arranjar alguma comida e de noite voltavam pra casa,
para arrumar as coisas. E os barulhos persistiam. Algumas noites, parecia que
arrastavam móveis até amanhecer. Também faziam muita gritaria e algazarra. Às
vezes parecia mesmo que havia um bando inteiro e não apenas um casal. Com a
intensa movimentação, pelas frestas do forro caía muita sujeira e poeira,
emporcalhando todo o quarto. Às vezes tinha a clara sensação que me espiavam
pelas frestas. Assim o tempo foi passando e eu fui embora, deixando o casal
ainda mais à vontade. Quando voltei, meses depois, para minha surpresa, eles
ainda estavam morando lá e a família já tinha aumentado. Agora eram o casal com
trigêmeos! As crianças deveriam ter algumas semanas de vida. Haviam nascido
saudáveis, porém, ao contrário dos pais que eram muito verdes e coloridos, os
filhos tinham um tom ainda acinzentado e algumas partes peladas. Movimentavam-se
pelo forro com dificuldade e desajeito, chegando a serem engraçados. Curioso, armei
uma enorme escada na pequena cozinha, que atrapalhava muito a minha
movimentação, mas assim, podia espiá-los de longe. Toda a vez que eu subia, os
três irmãos me olhavam de lado, com uma cara engraçada de curiosidade, talvez
imaginando que eu poderia ser a sua mãe trazendo comida, mas eu sempre os
frustrava e não lhes dava nada. Por vezes, atirava-lhes algumas sementes de
girassol, no café da manhã, mas eles as ignoravam, pois esperavam a comida
direto na boca e como a minha pontaria não era das melhores, eu preferia deixar
essa tarefa para a mãe deles. Quando esta chegava com a comida, promoviam uma
algazarra que eu nunca havia visto igual. Nesses momentos ela aproveitava para
ensiná-los a bater as asas, preparando-os para saírem do meu forro e ganharem o
mundo. Enquanto isso, o pai esperava num galho de uma árvore próxima, como se
vigiasse tudo. O barulho e a sujeira que caía do forro eram descomunais. E
assim as semanas foram passando, até que numa espiadela, eu os vi praticamente
prontos para a vida, numa lição que todos os pais deveriam aprender. A prova de
que já estavam prontos é que já começavam a revelar a sua essência cigana. E
ontem foi engraçado. Vejam só: quando subi a escada na cozinha para espiá-los,
o primeiro - provavelmente o mais velho dos três - andou na minha direção e me
pediu uma galinha. Disse que iria a uma festa à noite e não tinha companhia. E
foi exigente: me pediu, que se fosse possível, lhe arranjasse uma galinha
esverdeada. Imediatamente eu respondi: -Amiguinho, só se eu pintá-la com spray
de carnaval, pode ser? Ao que ele me disse: -Se for assim, pode deixar que eu
mesmo PINTO. Logo em seguida, veio o do meio, ainda mais esverdeado, me pedir
pra carregar o celular na tomada da cozinha. Eu logo pensei: olha como são as
coisas, vivem acampando por aí, sem a menor estrutura ou conforto, mas não
abrem mão da tecnologia. Onde já se viu dar um celular para uma criança? Por isso
temos tantos problemas sociais de dar PENA. Ao menos isso era um bom sinal e provava que já eram
“antenados” pois, realmente, aqui nestas paragens, o sinal é muito bom. E, por fim,
a caçula também veio me procurar. Sim, isso mesmo, a pequenininha era uma
menina! Que belezinha. Tão pequena e já tão espertinha. Danadinha! Veio até mim
e, como uma boa ciganinha, me perguntou se eu não tinha nada pra trocar por
alguns panos de prato, que ela mesma pintara ao bico. Vi que eram bem
feitinhos, pintados com motivos silvestres, mas infelizmente, eu já tinha
muitos panos, alguns até bem quentes, que usava para colocar nas coisas. Então,
ela insistiu e pediu para ler a minha mão. Eu disse que a minha mão não estava
lá muito benta e que as letras talvez não estivessem legíveis, dificultando a
leitura. Então ela me perguntou se eu era crente ao que respondi que acreditava
em tudo, até em papagaios ciganos falantes. Ainda mais pelo fato de aqui nas
roças de Caldas não haver papagaios, só maritacas, e aos MONTES! E, até por
isso, quando têm alguma dor nas costas, ao contrário do que dizem na cidade, as
pessoas daqui logo falam que estão com “bico de maritaca”. Sempre achei essa
expressão muito engraçada. Mas voltando à VACA fria, a verdinha ficou
sensibilizada e me deu um lindo paninho feito de penas, sem exigir nada em
troca, o que me emocionou bastante. Disse que estava me agradecendo pela boa
acolhida que lhes demos e que os pais, ao voltarem à noite, também iriam me
agradecer bastante. Eu disse que não precisava, que eu havia apenas feito o que
era certo. Eu gosto de ajudar. Eles também se emocionaram e me disseram que
gostaram muito de mim, porque eu não tinha “cisma” de cigano e os tratara como
gente, de maneira normal, sem nenhum preconceito. Com lágrimas nos olhos, eu
aprendi mais uma lição e fiquei torcendo para que estes belos serezinhos
realmente estivessem preparados para enfrentar o mundo que os esperava. Que
Deus proteja estes papagaios falantes ciganos, para que, quando finalmente
saírem da segurança do forro da minha casa, possam fazer o que eu sempre sonhei
e só em sonho posso realizar: alçar livremente vôos cada vez mais altos por
sobre as magníficas montanhas e vales da linda Caldas.
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